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Primeira Mistagogia da Oração do Senhor (1) -artigo do Padre Danilo César – Paróquia Santa

O Pai nosso é a oração que o Senhor Jesus deu aos seus discípulos, quando esses solicitaram: “Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou a seus discípulos” (Lc 11,1). A oração que foi, por Jesus, dada aos discípulos, é cunhada pela tradição da Igreja como “Oração do Senhor”, ou “Oração do cristão”. Nas celebrações dos sacramentos, sobretudo na Eucaristia, essa oração sempre comparece introduzida por um convite presidencial. O convite varia nas suas formulações, mas obedece à mesma função de reunir os orantes e motivá-los à oração. Essa motivação, pela variedade e conteúdo, revela a importância da oração para a Igreja e para os fiéis:

Na Eucaristia (Missal Romano)

–  Obedientes à palavra do Salvador e formados por seu divino ensinamento, ousamos dizer:
-Rezemos, com amor e confiança, a oração que o Senhor Jesus nos ensinou:
-O Senhor nos comunicou o seu Espírito. Com a confiança e a liberdade de filhos, digamos juntos:
-Antes de participar do banquete da Eucaristia, sinal de reconciliação e vínculo de união fraterna, rezemos, juntos, como o Senhor nos ensinou:
-Guiados pelo Espírito de Jesus e iluminados pela sabedoria do Evangelho, ousamos dizer:

Na Iniciação cristã de adultos (Ritual de Iniciação Cristã de Adultos)

-N. liberto dos teus pecados e regenerado por Deus Pai, te tornaste seu Filho em Cristo. Antes de receber o corpo de Cristo, no Espírito de filho adotivo que hoje te foi conferido, reza juntamente conosco como o Senhor nos ensinou:

No batismo de crianças (Ritual do Batismo de crianças):

-Estas crianças que foram batizadas são chamadas, em Cristo, a viver plenamente como filhos e filhas de Deus Pai. Para isso, elas precisam também ser fortalecidas pelo Espírito Santo no sacramento da confirmação e alimentadas na Ceia do Senhor. Agora, ao redor dessa Mesa, unidos no Espírito, rezemos:
No sacramento da reconciliação (Ritual da Penitência):
-Roguemos agora a Deus, nosso Pai, com as mesmas palavras que Cristo nos ensinou, a fim de que perdoe nossos pecados e nos livre de todo o mal

No sacramento da Unção dos enfermos:

-Agora, todos juntos, roguemos a Deus, como nosso Senhor Jesus Cristo nos ensinou:

O que Jesus tem de seu

O que Jesus dá aos seus discípulos é mais que uma fórmula. Ele concede a eles algo muito próprio da sua relação com Deus. Para Jesus, Deus é Pai e é Rei ¹.  Essas duas imagens são simbólicas e traduzem experiências variadas e diversas, sempre abertas, porque igualmente ricas de significados. Dizer que Deus é Pai ou Rei pode variar o sentido a partir da experiência que se faz de reinado ou da paternidade. Pode também variar a partir da cultura ou da condição social, ou da situação histórica. Os povos circunvizinhos da Palestina, no tempo de Jesus, eram habituados a chamar a Deus de Pai. Contudo, em relação ao povo do Antigo Testamento, nas escrituras da Antiga Aliança essa designação aparece apenas quase duas dezenas de vezes²,  praticamente ao modo metafórico, como a frequente fórmula encontrada no segundo livro de Samuel, “ele será para mim como um filho e eu serei para ele como um pai”. Isto é, o judeu era muito reservado para chamar a Deus de Pai. Mas a partir do Novo Testamento essa característica muda radicalmente. Só nos evangelhos sinóticos a marca de quase duas dezenas é superada por um número de 67 vezes, sendo que dessas, 10 vezes é usada apenas por Jesus. Estamos diante de uma novidade que tem origem na pessoa de Jesus mesmo! Essa novidade, considerada a maior pretensão de Jesus, assinala uma originalidade fundamental da fé cristã:

Ele se comporta para com Deus como o filho por excelência, como o demonstra a palavra Abbá que Marcos põe em seus lábios na cena da agonia no horto (cf. Mc 14,36). Há nessa cena algo mais e um salto que a espiritualidade judia não havia dado senão excepcionalmente, enquanto que o termo se difunde no Novo Testamento. É um termo que expressa familiaridade de trato – papai -, o caráter único da relação existente entre Deus e Jesus. Este termo, de ressonâncias joânicas e profundamente semíticas, está, sem dúvida, presente em Mateus e em Lucas, na exclamação de júbilo de Jesus, que não hesita em dizer: “Ninguém conhece ao Filho senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o Filho e a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11,27; Lc 10,22)³.

Isso que chamamos ser a maior pretensão de Jesus, é algo original da sua relação com Deus. Ser Filho, ser gerado, é a especialidade da segunda Pessoa da Trindade Santa, assim como ser Pai é a especialidade da primeira Pessoa. O Verbo é Filho desde toda a eternidade, mas ao assumir a condição humana, vive historicamente, no limite e na fragilidade humana, aquilo que era do seu ser junto de Deus Pai. Ser humano é ser em construção, é tornar-se, é aprender, é crescer, é amadurecer. Assumindo a nossa humanidade, o Verbo cumpre a tarefa de fazer coincidir humanamente a sua filiação que já tinha junto de Deus, previamente à encarnação.

E o ser filial de Jesus se desdobra em duas atitudes básicas e complementares: obediência e oração. Ser filho é estar inteiramente aberto ao Pai na escuta e na resposta. Escuta em sentido profundo, quem obedece (obeodire = escutar, dar ouvidos, obedecer). Responde em sentido profundo, quem escutou verdadeiramente, quem obedeceu, isto é, ora de verdade.

A obediência é a virtude filial por excelência. Jesus “se tornou obediente” (Fl 2,8). Ele lutou por isso: “Abbá! Se é possível […] Não a minha vontade, mas a tua” (Mc 14,36). “Aprendeu o que significa a obediência por aquilo que sofreu” (Hb 5,8). Ele devia tornar-se obediente; não porque tenha sido algum dia insubmisso, mas porque, na Terra, ninguém pode praticar um ato absoluto, eterno. Tudo é fragmentado. Tudo é medido pelo tempo. Hoje se pratica um ato de obediência a Deus, no dia seguinte é preciso praticá-lo de novo. Mas Jesus se tornou “obediente até à morte”, em um ato absoluto de submissão, na medida da infinita paternidade de Deus. Ao aceitar a morte, ele consente em existir só para o Pai que o gera e se torna, na plenitude de sua liberdade humana, o Filho que é desde o início4.

Na oração, Jesus exprime sua total abertura ao Pai que lhe fala. “A oração é um ato filial. Quem ora deixa-se gerar, filializa-se quando ora”5.  Na oração, o Pai o reconhece como Filho (cf. Lc 3,21-22). Esses dois desdobramentos da filiação de Jesus encontram na cruz uma convergência: nela se manifesta o Filho na sua máxima obediência, nela se manifesta a sua oração filial: “Pai, em tuas mãos, entrego o meu espírito” (Lc 23,46; cf. Sl 31,6).

 

 

Padre Danilo César dos Santos Lima é liturgista
e pároco da Paróquia Santana- bairro Serra

 

 

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¹ Cf. BARBAGLIO, G. Jesus, hebreu da Galileia. Pesquisa histórica. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 590-605.
²Cf. Dt 1,31; 9,5; 32,6; 2Sm 7,14; 1Cr17,13; 22,10; 28,6; Sl 68,6; 89,27; 103,13; Pr 3,12; Is 63,16; 64,7; Jr 3,4.19; 31,9; Ml 1,6; 2,10.
³SESBOÜÉ, Bernard. Cristo, Señor e Hijo de Dios. Col. Alcance, 66. Maliaño: Sal Terrae, 2014, p. 29-30.

4DURRWELL, François-Xavier. A morte do Filho. O mistério de Jesus e do homem. São Paulo: Loyola, 2009, p. 25.
5Idem, 26.