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O Messias e o mundo que há de vir

 

 

 

 

 

 

 

 

Uma das dificuldades para o povo judeu na compreensão de que Jesus seja, de fato, o Messias esperado reside no “mundo que há de vir”, um tempo marcado pelo Shalom bíblico que, para os judeus, ainda não se realizou. A presença do Messias se justifica exatamente por ser ele quem virá libertar Israel e todo o mundo do jugo da impiedade no qual o mundo de agora está imerso: “A promessa tradicional de paz, integridade, perfeição humana e abundância como marcos da vinda do Messias parece, infelizmente, ainda irrealizada aos olhos dos judeus, tornando implausível a alegação de que o Messias já veio.”1

A fé judaica compreende que o “Mashiach2 e a era Messiânica são o objetivo final do mundo, pré-concebido desde o começo, para o qual o mundo foi criado.”3 Neste ponto, a fé cristã concorda com a perspectiva de nossos irmãos mais velhos, “a quem Deus falou primeiro”, conforme rezamos na Oração Universal da Sexta-feira Santa. Entretanto, para nós, cristãos e cristãs, este Messias já chegou e o tempo de graça foi iniciado. Os Evangelhos são a narrativa desta visita de Deus por seu Messias Jesus transformando o mundo por seu ministério. Estas histórias foram contadas no contexto litúrgico antes de se tornarem “Escritura” e “cânon”. À moda judaica, os cristãos das origens se reuniam para narrar os feitos do Senhor em Jesus e elevar seus louvores e preces ao Deus que em seu Senhor e Messias se revelara plenamente.

Esse “mundo que há de vir” apregoado pela fé judaica e também pelos cristãos coincide com o Reinado de Deus. E este é o “único” assunto que encontraremos na boca de Jesus. Conforme nos adverte Gerard Lohfink, “se quisermos falar de Jesus – daquilo que Ele queria e daquilo que Ele era – devemos falar primeiramente e sobretudo do Domínio de Deus.”4 O único evento que para Ele realmente importa foi comunicado por Jesus em seu: “O Reino de Deus está próximo”, ou nas palavras de Ed Kivitz “está aqui, próximo de nós, ao alcance de nossas mãos.”5 Esta proximidade se refere, antes de tudo, à humanidade do Messias Jesus. O Reino de Deus nos é próximo porque a humanidade de seu portador nos é acessível. Nós responderíamos que “o mundo que há de vir” já veio porque este mundo coincide com o “vir-a-ser” de Jesus no exercício concreto, real, palpável de sua humanidade. O mundo de Deus está concentrado, sintetizado, compendiado, capitulado na pessoa de Jesus.

Em suas celebrações, para marcar a sua identidade e missão, os cristãos entoavam peças semelhantes exaltando a figura de Jesus, interpretando sua vida como acontecimento messiânico. São Paulo, em sua Carta aos cristãos de Colossas, uma pequena cidade da Ásia Menor, recolhe um antigo hino cristológico que denuncia sua compreensão de viverem já nos tempos escatológicos ou da realização messiânica.6 Particular atenção pode ser dada ao versículo 16 e 17 nos quais se lê: “porque nEle foram criadas todas as coisas (…) tudo foi criado por meio dEle e para Ele.” Esta afirmação coincide exatamente com aquilo que a fé judaica concebe a respeito do Messias e do mundo criado, conforme citado acima. Os cristãos ousam proclamar que o tempo de espera, de certo modo, cessou e fomos mergulhados na era da realização escatológica, de modo que vivemos em Cristo a finalidade dos tempos.

A Liturgia é o mergulho consciente da Igreja nestes “últimos tempos”. Ela é o primeiro indício do Governo de Deus realizando-se mediante a atuação da pessoa do Messias Jesus no mundo, sacramentalmente representado (=tornado presente) no corpo eclesial. Na Liturgia, “o mundo que há de vir”, vem e atua na comunidade celebrante. À medida que, simbolicamente, a comunidade assume a gestualidade de Jesus, assume sua humanidade e ao absorver sua modalidade de vida, regenera-se, torna-se justo e santo. Tinha razão, neste sentido, Cirilo de Alexandria quando lia Mt 3,2 assim: “Reino de Deus significa a justificação pela fé e a santificação pelo Espírito. Por isso, em alguma passagem se diz: ‘o Reino dos Céus está dentro de vós.’

 

 

 

 

 

 

 

 

Padre Márcio Pimentel
Liturgista

 

1 POLISH, Daniel F. Reflexão judaica sobre imagens de Jesus. In. BRUTEAU, Beatrice. Jesus segundo o Judaísmo. São Paulo: Paulus, 2011, p.131.
2 Messias.
3 SCHOCHET, Jacob Immanuel. Maschiach. O princípio de Mashiach e da Era Messiânica segundo a Lei Judaica e sua Tradição. São Paulo: Maayanot, 1992, p. 37.
4 LOHGINK, Gerhard. Jesus de Nazaré. O que Ele queria? Quem Ele era? Petrópolis: Vozes, 2015, p.38.
5 KIVITZ, Ed. Talmidim. O passo a passo de Jesus. São Paulo: Mundo Cristão, 2012, p. 22.
6 Cf. MARTIN, R.P. Hinos, fragmentos de hinos, cânticos, cânticos espirituais. In. HAWTHORNE, Gerald, F. MARTIN, Ralph P. REID, Daniel G. Dicionário de Paulo e suas cartas. São Paulo: Co-edição Vida Nova, Puluas e Edições Loyola, 2008, p. 629.
7 Cirilo de Alexandria. Fragmentos sobre o Evangelho de Mateus, 17. In. SIMONETTI, Manlio. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia. Novo Testamento 1a. Pamplona: Vida Nueva, 1999, p. 83.